domingo, 29 de março de 2015

O furo na parede

Se lembra quando eu disse que, ao receber de Deus a cura de minha dependência em anfetaminas, não significava que Ele houvesse apagado o meu passado e nem me livrado das consequências de tudo o que fiz? Deus "tirou o prego", mas em sua soberana vontade, manteve a marca, o "furo na parede".

As consequências foram aparecendo, cada vez mais fortes conforme eu envelhecia. O meu organismo continuou debilitado, fraco, sem energia. Meu metabolismo foi seriamente atingido, tornando-se cada vez mais lento, dificultando a perda de peso. Mesmo assim, eu continuava lutando.

Desenvolvi o hipotireoidismo.

A tireoide é uma glândula importantíssima para o funcionamento harmônico do organismo. Os hormônios liberados por ela, T4 (tiroxina) e T3 (triiodotironina) estimulam o metabolismo. O hipotireoidismo é um distúrbio da tireoide que passa a ter nenhuma ou baixa produção de hormônios. Com essa disfunção passei a ter muito cansaço, depressão, adinamia (falta de iniciativa), pele seca e fria, diminuição da frequência cardíaca, decréscimo da atividade cerebral, inchaço, sonolência, reflexos mais vagarosos, intolerância ao frio, alterações menstruais e ganho de peso. Tive que começar um tratamento que duraria para o resto de minha vida.

Também me tornei uma pessoa hipoglicêmica.

A hipoglicemia é um distúrbio provocado pela baixa concentração de glicose no sangue. Os quadros de hipoglicemia se instalam quando aumenta a quantidade de insulina no sangue, quando diminui a quantidade de hormônios do crescimento, adrenalina e cortisol. Os sinais da hipoglicemia podem ser produzidos pelos hormônios de contrarregulação e pela redução de glicose no cérebro. No primeiro caso, os sintomas são tremores, tonturas, palidez, suor frio, nervosismo, palpitações, taquicardia, náuseas, vômitos e fome. No segundo, confusão menal, alterações do nível de consciência, perturbações visuais e de comportamento que podem ser confundidas com embriaguez, cansaço, fraqueza, sensação de desmaio e convulsões. No início me foi muito difícil aprender a controlá-la, mas com o tempo consegui entender os sinais dados pelo meu corpo. Não há medicamentos a serem tomados, é necessário prevenir as crises restringindo a ingestão de açúcares e se alimentando a cada 2 ou 3 horas.

Sempre tive dificuldade para dormir nos horários convencionais, isto é, enquanto todos dormiam eu ficava acordada e vice-versa. Tenho o chamado "cronotipo vespertino". Porém, depois de tudo o que me aconteceu, essa peculiaridade de minha vida se acentuou, passando a me prejudicar no dia-a-dia, no trabalho e nos estudos.

Minha dificuldade de concentração e de memorização também permaneceram e foram ficando maiores conforme o tempo foi passando. Foi com muita dificuldade que consegui concluir os meus 5 anos de faculdade. Só eu sei o quanto sofri para acordar cedo todos os dias, permanecer atenta às aulas, fazer as leituras de livros e mais livros, realizar trabalhos, fazer projetos, apresentar seminários... Não contava a todos sobre o meu "passado trágico", mas ao mesmo tempo me era extremamente difícil não ter como explicar minhas dificuldades sem tocar nesse assunto.

Fui à vários endocrinologistas nos anos seguintes, sempre buscando novas alternativas. Eu não desistiria de lutar contra o excesso de peso. De tempos em tempos tentava uma loucura, como a dieta da lua, a dieta do ovo, a dieta da sopa, dieta naturalista, dieta dos carboidratos... Fazia exercícios regularmente e vez ou outra tomava medicamentos "leves", sem nenhum composto que tivesse co-relação com anfetaminas. Apesar de entender que eu era bonita estando magra ou gorda, meu sonho em ter um corpo que não fosse notado de maneira negativa continuava permeando os meus pensamentos.

sábado, 28 de março de 2015

Levantando os olhos mais uma vez

Eu me sentia sozinha, mas não estava sozinha. 
Deus estava comigo e se fazia presente de várias formas.

Uma das formas mais inusitadas foi através de uma mulher muito doce e bondosa que soube da minha situação e se compadeceu. Ela havia sido deixada pelo marido anos antes e apesar de sua experiência ter sido bem diferente da minha, ela sabia muito bem qual era a dimensão da dor que eu estava sentindo. Ela foi até a minha casa, contou toda a sua história, me deu esperança e me ofereceu ajuda. Prontamente aceitei. Então ela marcou uma consulta com o seu médico e me levou para que eu começasse um tratamento contra a depressão.

Comecei a tomar os medicamentos receitados e após algumas semanas comecei seguir à risca as orientações do doutor. Ocupei o meu tempo com atividades, me distraí e só me deitava na cama após estar sob o efeito de uma das pesadas medicações. Foi então que depois de algumas semanas eu entrei em vários cursos durante o dia, comecei a passar horas na academia diariamente e fazer cursinho durante a noite. Ocupei todo o meu tempo, mas de nada adiantou, eu pensava em tudo o tempo todo. Minha cabeça não parava de pensar e pensar e pensar...

Alguns velhos amigos da época de minha adolescência se reaproximaram de mim. Pessoas que também tinham um relacionamento diferenciado com Deus. Com eles fiz novas amizades e então comecei a participar de algumas atividades em conjunto. Esta é uma parte de minha vida que me lembro até hoje com muito carinho e muitas saudades. Estas pessoas me ajudaram a passar por esse momento delicado, choraram comigo, me fizeram rir muito e me mostraram que valia a pena viver. Com vários deles tenho amizade até hoje. Alguns poucos da minha "época louca" se reaproximaram também. Pude conversar a respeito de tudo o que me aconteceu e nosso relacionamento tomou novas proporções, com amadurecimento e respeito.

Foi um ano de restabelecimento do meu amor próprio, de me dar valor, de entender que eu era uma criatura amada por Deus e que ele tinha muitos planos para a minha vida. Escolhi me aprofundar cada vez mais em meu relacionamento com Ele, lendo as Escrituras e falando com Ele através das orações, diariamente.

Com o restabelecimento de minha saúde, comecei a ganhar peso novamente. Porém, estranhamente já não me abalava tanto o fato de estar acima do peso. Tudo o que passei me fez enxergar a vida de uma forma um tanto quanto diferente. Se era gordinha que eu ficaria pro resto da vida, então eu teria que aprender a conviver com isso da melhor forma. Entendi que, naquela altura dos acontecimentos, eu deveria me manter longe de qualquer medicamento para emagrecer. Mesmo que isso me fizesse estar no time das meninas com sobrepeso, as chamadas "plus size" dos dias atuais.

Meu corpo nunca foi feio. Sempre tive cintura proeminente, coxas grossas, bumbuns e seios proporcionais a todo o resto. Sempre fui muito elogiada pela beleza de meu rosto e de meus olhos verdes. E ali, naquele ano, comecei finalmente a enxergar que era bonita, estando magra ou gorda.

sexta-feira, 27 de março de 2015

O duro golpe

O fato de eu ter sido curada da dependência não significava que eu também houvesse sido curada das consequências do uso indiscriminado de anfetaminas. Recebi um presente indescritível de Deus, mas como todo prego tirado da parede, as marcas ficaram.

A guerreira que sempre fez parte de mim respirou fundo. Levantou-se e decidiu-se por começar um novo tempo, um novo caminho. Seguiu em frente sem olhar para trás.

A partir daquele momento tudo mudou. Deixei de ir aos lugares que frequentava antes do processo de desintoxicação. Já não fazia mais sentido continuar a viver uma vida que me trouxe tantos estragos. Não foram os meus amigos, os shows, o rock ou os meus costumes que me levaram para onde fui, mas todo o contexto contribuiu grandemente para que eu me perdesse no meio do caminho. Naquele momento já não me era possível separar as coisas. A minha vida louca de saídas e rock´n´roll estava intimamente entrelaçada com os meus maus costumes, com o álcool, com as anfetaminas.  Eu jamais conseguiria fazer uma coisa sem viver a outra.

Meu lado espiritual também mudou. Voltei a ter um relacionamento com o Eterno e busquei nele as forças necessárias para atravessar aquele momento de adaptação a uma nova vida.

Passei a ouvir outros estilos musicais, pois qualquer menção de música rock me trazia memórias auditivas que me faziam extremamente mal. Sentia muita falta de tudo e de todos, da adrenalina da vida noturna, das frases sem sentido e das risadas sem motivo. Justamente agora que eu havia resolvido mudar de vida, toda a tristeza e decepção pareciam ter desaparecido, restando apenas as boas lembranças das amizades e das farras. Era como se o meu subconsciente me impelisse ao auto-sabotamento novamente.

Me mantive firme. Estava caminhando bem. Foi quando o meu namorado da época desistiu do namoro. Ele não queria viver a mudança de vida comigo e não seríamos capazes de manter um relacionamento trilhando caminhos tão diferentes. Na verdade quem teve que fazer essa escolha fui eu, pois ele me disse que se eu conseguisse me manter sóbria e limpa em nosso "antigo mundo", sem me relacionar com o Eterno de maneira tão intensa, ele continuaria comigo. Mas aquele era uma realidade inexistente, uma alternativa nula.


Quando ele foi embora, meu mundo desabou. A reserva de forças que eu havia guardado cuidadosamente em meu coração se espalhou feito vento. O medo, o desespero, a agonia, a profunda tristeza voltaram com toda a fúria. Eu o amava mais do que tudo, planejávamos nos casar em pouco tempo, havíamos vivido juntos as melhores e piores experiências. Não conseguia nem sequer fazer menção de uma vida sem ele. A depressão voltou mais forte do que nunca, mas com uma ressalva. Desta vez eu não tinha onde me refugiar, nem nas anfetaminas e nem no álcool. Como foi difícil não recorrer a eles! Meu corpo gritava por isso, meu sangue pulsava clamando pela bebida. Meu Deus... Meu Deus... Sim, eu só tinha a Deus naquela hora.

Mas não aguentei. Estava fraca, sozinha e vulnerável. Fui ao supermercado e comprei uma garrafa de whisky. Tomei ali na rua mesmo, sentada na calçada. Gole a gole, terminei a garrafa toda de uma só vez. Voltei para casa pior do que nunca. Entrei debaixo do chuveiro e chorei uma eternidade.

Parei de comer. Parei de fazer planos. Parei de querer viver. A vida já não fazia sentido algum. Eu não tinha pra onde ir, não tinha o que fazer. Os meus amigos se foram, nenhum deles apareceu para me estender a mão. Eu teria que começar tudo do zero, fazer novos amigos, escolher uma faculdade para entrar, pensar no futuro. Que futuro? Qualquer futuro sem o amor da minha vida não fazia o menor sentido. Mil coisas vieram à minha mente... Se ele realmente me amasse, ficaria comigo em qualquer situação. O sentimento de fracasso e humilhação me acompanharam por dias e dias.

Eu só ficava deitada em minha cama, chorando sem parar. Quando não chorava copiosamente, permanecia com o olhar distante enquanto as lágrimas escorriam sem qualquer controle. Não comia, não bebia, não falava. Não dormia, a não ser quando a exaustão me dominava. Não estava entendendo nada, absolutamente nada do que me estava acontecendo naquela altura da vida. Logo quando resolvo me levantar e lutar, recebo um golpe tão duro! Minha alma sangrava.

Se lembra da menina que queria emagrecer a qualquer custo? Pois bem, ela conseguiu finalmente ficar magra. Emagreci tanto que minhas roupas caíam de meu corpo. Fiquei irreconhecível. Meus ossos apareciam debaixo de minha pele, coisa que nunca havia acontecido antes (quem sempre foi obeso sabe como é isso). Fui ficando cada vez mais fraca, sentia a vida deixando o meu corpo aos poucos. Eu não queria mais lutar, não queria mais viver. Estava cansada de tudo. Meus pais, preocupados, já não sabiam mais o que fazer. Me lembro de minha mãe sentada ao lado de minha cama, segurando uma de minhas mãos e dizendo "Filha, isso vai passar! Vai passar! Tenha fé."


quinta-feira, 26 de março de 2015

O renascimento

A minha situação era a seguinte: eu estava com pouco mais de 19 anos, passando pelo momento mais difícil de minha vida. Nunca estive tão magra, mas o peso já não tinha a menor importância pra mim. Eu queria a minha vida de volta.

Este blog tem sido escrito pra que eu compartilhe minhas dificuldades em relação ao peso e algumas mudanças que pretendo realizar na área da saúde. Mas não posso simplesmente deixar de contar uma das coisas mais importantes que aconteceram em meu processo de reabilitação.


Um pastor muito querido pela minha família, sabendo que eu não estava muito bem, veio me visitar. Ao vê-lo comecei a chorar muito, dizendo que ninguém fazia ideia do que eu estava passando, que eu estava completamente sozinha... Então ele me falou sobre o poder de Deus e de como Ele poderia me curar se quisesse. Naquele momento, chorando muito, eu disse ao pastor que não sabia se Deus existia, que havia ouvido e lido coisas demais a respeito de outras crenças, que havia trilhado um pouco o caminho do espiritualismo e esoterismo, ido a algumas palestras "new age", tido conhecimento a respeito de ovnis e tantas outras coisas. Minha cabeça já não aceitava mais explicações simples e nem a Bíblia como um livro sagrado, apenas como um livro de sabedoria.

Meu coração estava confuso. Dos 6 aos 16 anos eu realmente acreditei que existia um Deus que regia a minha vida. Mas a minha visão desse Deus, por mais que eu tivesse boa vontade, era um pouco embaçada pela minha falta de conhecimento.

Depois que eu me acalmei um pouco, o pastor tomou uma atitude ousada, que só quem tem absoluta certeza naquilo em que crê pode fazer. Ele me disse para que eu pedisse a Deus a coisa que eu mais queria naquele momento. Que se Ele quisesse, Ele me daria uma prova de sua existência, fazendo exatamente aquilo que pedi. Lembro-me que não acreditei que eu estava falando com alguém, achava que estava falando com as paredes. Mas falei. Disse a Deus que se Ele realmente existisse, que o que eu mais queria é que Ele me curasse da dependência.

Lembrando que eu estava no décimo sexto dia de um tratamento de desintoxicação que duraria no mínimo 3 meses. Naqueles anos todos eu tive muita dificuldade para dormir e quando conseguia, dormia de 2 a 5 horas por noite. Estava sempre cansada. Naquele dia eu somava exatos 4 dias sem dormir nem um pouco. Estava exausta, pálida, praticamente afundada na cama, tremendo, suando frio, sem esperanças, depressiva, chorando, zonza, esperando apenas a vida terminar. Tinha desistido de viver. Tudo aquilo era demais para mim, não queria mais lutar.

Mas eu falei com Ele. Pedi. E Ele me respondeu.


Naquela noite eu finalmente dormi. Sem dificuldade, sem insônias, sem pesadelos... simplesmente dormi. Ao acordar fui avisada pela minha mãe que eu dormi 18 horas seguidas. Meus tremores diminuíram drasticamente. Nos dias que se seguiram, minhas feridas começaram a literalmente desaparecer. Não sofreram o processo natural de cicatrização, elas foram sumindo rapidamente e não deixaram nenhuma marca em minha pele tão branca. Na semana seguinte eu consegui dormir 8 horas por dia, meus tremores haviam desaparecido, não suava mais, chorava muito pouco. Senti uma paz que há muitos anos não sentia.

Voltei ao médico que, totalmente surpreso, não acreditava naquilo que seu olhos viam. "Isso é impossível", ele repetia várias vezes. "Você fez o tratamento por muito pouco tempo, não é possível que você esteja tão bem, não houve tempo para que o seu corpo reagisse dessa forma". Fizemos alguns exames e então foi constatado que eu não tinha mais nenhuma substância em meu corpo. Nada. Nem anfetaminas, nem álcool, nem os medicamentos que estava tomando no tratamento. Foi como se alguém tivesse tirado tudo aquilo com a mão. Não foi psicológico. Foi real, extremamente e radicalmente normal.

Uma pausa para reflexão

Confesso que não tem sido muito agradável reviver aquela época de minha vida assim, com tantos detalhes. Imaginar que alguém está lendo estes posts é um tanto quanto constrangedor. Sempre que contei minha história para alguém, sempre foi de forma resumida, sem me ater a tantos detalhes. Mas reconheço esse momento como catalizador de emoções e de possíveis respostas a tudo o que tenho vivido nos últimos 20 anos em que olhei pra dentro de mim mesma e não entendi porque algumas coisas eram tão difíceis de se realizar. Hoje mesmo, conversando sobre este blog com o meu marido e citando algumas coisas aqui escritas, chegamos à algumas conclusões.


Não posso me considerar uma pessoa normal. 
Pelo menos não do ponto de vista da sociedade em geral. 

Pra começar, não consigo dormir cedo. Jamais. Se penso em dormir cedo, durmo às 2 da manhã. Normal pra mim é dormir entre as 3 e às 5 da madrugada. Normal pra mim é dormir de manhã. Então quando tenho compromissos no período da manhã, imagine o quanto me é difícil. Sim, vou lá e cumpro, mas sinto como se não estivesse lá. Por exemplo, se eu for pra alguma aula, preciso desenhar ou escrever. Se apenas ouvir, não ouço nada.

Não consigo ter rotinas ou disciplinas. De jeito nenhum. Tenho que me esforçar muito para cumprir algumas tarefas. Há anos venho tentando estipular tarefas e horários pré-determinados, mas nunca consigo cumprí-los. Não é questão de má vontade ou preguiça, simplesmente não consigo. Quando percebo já era, já foi, já passou. Isso porque tenho agenda, agenda telefônica, bilhetinhos na geladeira. Na época da faculdade sofri muito com isso. Quando trabalhava fora também. Cumprir horários e "bater cartão" é extremamente difícil pra mim. Tanto que a maneira que encontrei para continuar trabalhando foi ser autônoma, trabalhando em casa, fazendo os meus próprios horários.

Também tenho um problema bem sério de memória. Não a memória antiga, essa é ótima, me lembro com detalhes de coisas que até faço questão de esquecer. Mas a memória recente, esta está muito complicada... Esqueço tudo, a todo momento. Já não guardo mais nomes ou números. Há 3 meses estou morando em uma nova cidade e ainda não consegui decorar o número do telefone de casa. Também não consegui decorar o número do meu celular que tenho há 3 anos. Não consigo decorar o número de meu CPF que tenho há décadas... Demoro muito para decorar nomes de novos conhecidos. Não consigo me lembrar das coisas mais corriqueiras. Quer um exemplo? Desde que me casei eu esqueço de estender as roupas que lavo na máquina. Todos os dias. Nos dois últimos anos me esqueci do meu próprio aniversário. 


Nos últimos anos venho me esquecendo de conversas. Meu marido me pede algo, se eu não fizer imediatamente eu me esqueço de fazer. Várias coisas que ele me conta, se ele fizer alguma pergunta sobre o assunto depois de um tempo eu sinto como se ele nunca tivesse me contado nada. Antes de termos consciência do que estava acontecendo comigo, tínhamos algumas discussões a esse respeito pois ele entendia que eu simplesmente não prestava atenção e por isso não guardava as informações. Por mais que eu explicasse, ele me dizia "você precisa prestar mais atenção nas coisas". Hoje tudo é diferente. Ele percebeu que é algo muito mais sério. Fico muito constrangida cada vez que alguém me diz "mas eu te contei isso, você não se lembra?"... Não, eu não me lembro. E tenho me lembrado cada vez menos.

Uma coisa tem me assustado. O meu pai está com a doença de Alzhaimer e sei que é genético. Algumas tias também tiveram. Ontem, ao escrever sobre as lesões irreversíveis que as anfetaminas ocasionaram ao meu cérebro, pensei em minha situação atual.  No problema de memória, na falta de concentração, na dificuldade em criar rotinas, na dificuldade em dormir.Tudo me leva a crer que estou caminhando a passos largos em direção ao Alzhaimer. Isso me preocupa, mas preciso viver o dia de hoje. E hoje, o que tenho, é a vontade de lutar.

A desintoxicação

Naquela altura de minha vida nada mais fazia sentido. Até meu namoro perfeito estava abalado. Foi quando começaram a aparecer as feridas em meu corpo.

Fui ao médico e ele imediatamente começou a fazer uma série de perguntas, como se já soubesse as respostas. Fui diagnosticada como dependente de anfetaminas. Após alguns exames veio a certeza: eu realmente estava com a dependência em sua forma crônica, afetando meu corpo e minha mente há anos, com o agravante de também ser uma alcoólatra. Fiquei muito assustada quando o médico me explicou que o tempo em que eu usei anfetaminas + álcool foi como se eu estivesse colocando uma bomba dentro de meu organismo, com efeitos semelhantes ao LSD.

Seria necessário que eu me internasse em uma clínica de reabilitação de drogas por seis meses para fazer a desintoxicação. Quando soube disso entrei em desespero! Meus pais iriam sofrer muito ao saber de minha condição. Para eles, todas as minhas oscilações comportamentais eram resultado de "coisa de adolescente", entrelaçado com o fato de eu "tomar remédios pra emagrecer que têm efeitos colaterais". Eles são bem mais velhos do que eu e vêm de uma realidade completamente diferente deste mundo caótico em que vivi. Até hoje não têm malícia, confiam demais nos filhos. 

Depois de pensar em meus pais, pensei em minha família, em meus velhos amigos e conhecidos. O que eu iria dizer a eles? Como enfrentaria os olhares de repulsa e acusação mais uma vez? Como lidaria com a rejeição?  

Implorei para que o médico me desse outra solução. Jamais iria de espontânea vontade a uma clínica. Foi quando ele me apresentou aos 16 remédios que eu deveria tomar por dia se quisesse fazer uma desintoxicação sozinha. Eu deveria tomá-los durante 3 meses e passar por uma avaliação médica para prosseguir com outros medicamentos. Mas ele fez uma séria advertência:

- Você não poderá mais frequentar os lugares que frequenta. Não poderá mais beber nem um gole de absolutamente nada alcoólico. Terá que se abster não só das anfetaminas e do álcool como também do seu estilo de vida atual. Qualquer coisa que te leve a fazer o que você faz, você deverá abolir de sua vida, senão não conseguirá fazer o tratamento. Por isso a necessidade de você se internar em uma clínica, lá você estará longe de tudo e de todos, podendo focar apenas em seu tratamento, tendo os cuidados e o acompanhamento de enfermeiros. Mas se você quer tentar fazer sozinha, é por sua conta e risco. Eu não me responsabilizo pela sua falha.

O meu fracasso já havia sido decretado. Mas eu tentei com todas as minhas forças tirar aquelas substâncias de meu corpo. Avisei minha família que estava passando por uma fase difícil, que queria muito ficar sozinha em meu quarto o tempo que fosse. Fui à farmácia, comprei todas aquelas caixas de remédios fortíssimos, coloquei-os em compartimentos com informações detalhadas de horas e maneiras a serem tomados. Fiz uma planilha de horários com letras grandes e escondi tudo dentro de uma gaveta de camisetas. Programei um aparelho de som, meus dois rádios-relógios e meu despertador para tocarem os alarmes nas horas certas. Escrevi na planilha: "aparelho de som = 2 remédios azuis / rádio relógio prateado = 1 remédio branco pequeno" e assim por diante.


Um dia acordei decidida a começar a desintoxicação. Walkyria resolveu tomar as rédeas de sua própria vida e deixar de ser escrava das anfetaminas e do álcool. 

Logo no primeiro dia comecei a ter alguns sinais da crise de abstinência. A depressão começou a se apoderar de mim, uma letargia grande, tonturas, calafrios. Nos dias que se seguiram, tudo foi piorando. Eu tinha crises terríveis, sentia o quarto girando, batia com a cabeça no chão pra que as dores parassem, gritava no travesseiro em meio ao desespero, chorava muito. Suava frio, suava muito, tremia horrores. Tudo isso em meu quarto, ao som de Led Zeppelin, Pink Floyd, Guns'N'Roses no volume máximo, para que meus pais não desconfiassem de nada. Me lembro de ouvir minha mãe batendo na porta trancada, gritando "Filha, abaixa esse som, tá muito alto" e eu responder "já vou, mãe". Me lembro de sair do quarto, tomar um banho, ir até a cozinha para comer alguma coisa mas vomitar em seguida. Me lembro de minha mãe me fazendo algumas perguntas e eu dando respostas evasivas enquanto entrava novamente no quarto. Me lembro de tomar água o tempo todo. Não me lembro de conversas com minha família, não me lembro de eu estar em outros cômodos da casa. Não sei ao certo como foram esses dias para a minha família. Não sei o que eles pensavam. Talvez achassem que eu estava rebelde demais, só isso.

Foram 16 dias de desintoxicação e crises de abstinência. Duas semanas que eu acreditava que faziam parte dos 3 primeiros meses de tratamento. Não sei até hoje como consegui fazer tudo aquilo sozinha. Talvez eu não estivesse realmente sozinha. Hoje eu tenho certeza de que, naquele quarto, Deus se fazia presente, cuidando de mim. Eu não conseguiria sem ele. E foi assim, no décimo sexto dia, que Ele veio até mim através de um servo seu, um pastor muito querido. Mas esta parte da história eu irei contar em um outro post.

quarta-feira, 25 de março de 2015

O fundo do poço

Até aqui tudo bem - pensava eu.
Bebia todos os dias, tomava anfetaminas todos os dias, "mas pararia a hora em que eu quisesse".

Tinha garrafas de bebidas alcoólicas escondidas em meu guarda-roupa para poder tomar um pouco a cada meia hora, tomava muito mais anfetaminas do que a recomendação diária permitida, tinha mania de perseguição, via vultos o tempo todo, tinha oscilações gigantescas de humor, era extremamente violenta ao mesmo tempo em que era extremamente amável, tremia a cabeça e as mãos a ponto de não conseguir segurar um copo normalmente, quase havia repetido de ano por faltas e notas baixíssimas. "Mas até aqui tudo bem", pensava eu. Afinal, eu continuava me divertindo com meus amigos, frequentando lugares legais, falando de música e arte, levando a vida "numa boa".

Com o passar dos anos comecei a perceber que havia algo errado comigo. Quando quis parar, não consegui. A cada tentativa, uma depressão imensa e repentina tomava conta de meu ser. A tristeza era tão grande que vinha acompanhada de pensamentos suicidas. Não só pensei em suicídio como tentei fazê-lo com todas as minhas forças. Não foram como aquelas tentativas em que se quer chamar a atenção, eu realmente queria morrer. Pensamentos de derrota, uma tristeza profunda, uma suspeita de que todos ao meu redor queriam me ver morta e a sensação de que nada valia a pena tomavam conta de meu coração e minha mente.

Mas uma vez mais preciso registrar aqui a minha crença no Eterno que, miraculosamente, me livrou da morte por três vezes. Numa delas, quando me atirei em frente a um caminhão em alta velocidade, uma força me empurrou para trás segundos antes de eu ser atropelada. O caminhão passou correndo muito, buzinando... me lembro dessa cena muito bem, ainda hoje consigo "ouvir" aquele som. Ninguém me empurrou, ninguém me puxou. Foi como se fosse uma força forte, um báque, um tranco que me jogou pra trás. Algumas pessoas viram e não entenderam o que havia acontecido. Estavam chocadas. Já me perguntaram se isso não foi uma alucinação ou uma situação produzida pelo meu cérebro. Afirmo que não, pois me lembro bem de todo o processo de planejamento do suicídio, a maneira como fiz e as marcas roxas que ganhei quando fui lançada ao chão. Naquele momento minha mente estava mais lúcida do que nunca.


Anfetaminas são drogas que atuam no cérebro, mais precisamente no sistema nervoso central, estimulando a produção de dopamina que, em excesso, inibe o sono e diminui o apetite. O uso acumulado pode provocar alucinações e o efeito é parecido com a cocaína. Quando não toma a droga o usuário fica em estado de depressão e letargia, então sempre quer doses a mais. Irritabilidade, tremor, ansiedade, labilidade do humor, cefaléia, calafrios, sintomas depressivos e exaustão são alguns dos sintomas apresentados com a dependência crônica. A pessoa fica longe da realidade, paranóica e impulsiva - a chamada psicose anfetamínica. Se mantém descuidada com seu compromissos e responsabilidades, tem delírios, alucinações auditivas e visuais, alterações na memória e na capacidade de julgamento, sofrendo também de delírio persecutório, suspeitando que todos estão tramando contra ela. A pele fica muito pálida devido à contrição dos vasos sanguíneos. O uso desregrado por anos pode ocasionar feridas. O uso continuado leva à degeneração de determinadas células do cérebro, produzindo lesões irreversíveis.

Você leu essa descrição? Pois você acabou de ler a minha descrição.

Eu estava chegando aos vinte anos carregando um fardo pesado demais para mim. As festas, os shows de rock e as bebedeiras já não me bastavam, já não eram mais tão divertidos. As noites em claro já não causavam euforia.

Tudo perdeu a graça e eu me vi escrava mais uma vez. Parei de fugir das vozes reais e passei a fugir de mim mesma, das vozes em minha cabeça.

Olhava para os meus pais que não sabiam de nada daquilo e me sentia extremamente culpada. Minhas crenças estavam viradas de cabeça pra baixo, já não sabia mais no que cria, em quem cria. Só sabia que, se realmente existia um inferno, eu já estava dentro dele. Eu havia me tornado uma alcoólatra dependente física, química e psíquica de anfetaminas.


segunda-feira, 23 de março de 2015

Anos Rebeldes


Olhar para trás e ver o que eu poderia ter evitado não me traz alento algum. Hoje, ao escrever este blog e pensar em tudo o que vivi, tenho a certeza de que minha vida estava sendo regida por uma poderosa mão, por algo mais forte, por alguém Eterno, que tinha todo o poder de colocar obstáculos que me fizessem mudar de caminho novamente. Se isso não aconteceu naquela época, é porque Ele permitiu que eu vivesse tais experiências. Talvez, se eu não as tivesse vivido, estaria hoje em um tormento psicológico tremendo.

Agora quero que você viaje no tempo comigo. O ano era 1990. Em meu acervo particular haviam discos e mais discos do melhor rock, dos mais clássicos aos sucessos da época. Eu, roqueira assumida, andava sempre com minhas calças jeans rasgadas, tênis all star ou coturno nos pés e camisetas pretas com estampas de bandas de rock. Cabelos sempre despenteados, pretos ou vermelhos, com algumas mechas coloridas. De tempos em tempos alguma novidade eu fazia, como raspar toda a nuca e manter o resto comprido. Naquela época não havia piercing, então furávamos as orelhas o máximo que conseguíamos com furadores normais das farmácias e nós mesmos furávamos o nariz para colocar argolas ou brincos. Eu tinha um de meia lua. Estava magra, bonita, perfeita, usando por fora o que eu sentia por dentro. Um grito contra tudo o que me fazia mal. Um soco no estômago de todos aqueles que me haviam feito sofrer.

Meu quarto tinha as paredes forradas com posteres das minhas bandas preferidas e em uma das paredes eu pintei, em tamanho gigante, o desenho da tatuagem que fiz em minha canela. 

O tempo ia passando e a cerveja já não me era tão absoluta. Em todas as festas, encontros e shows, tudo era regado à muito álcool. Foi então que passei a tomar whisky, wodka, batidas, licores e o que mais tivesse por perto. Só não tomava pinga. O efeito do álcool + anfetaminas era bombástico, a ponto de eu ter alucinações, viver em um mundo paralelo a maioria do tempo, sempre fora da realidade. Tudo o que era parecia não ser e o que não era parecia ser.


Meu namorado da época montou uma banda com seus amigos, mas o baterista não pode mais participar. Lá fui eu tocar bateria. A menininha do papai que não podia fazer nada, a mocinha bem comportadinha que sempre fez tudo como manda o figurinho se tornou uma roqueira bêbada, drogada, baterista de uma banda de garagem, com olheiras e cara de louca. O fato de agora eu ter um namorado me dava o ticket de passagem para poder esticar meus programas até mais tarde ou dormir fora, "no quarto da irmã dele". Sempre ouvindo todas as recomendações possíveis de como eu deveria me comportar, fazendo cara de boazinha e enganando a todos, saía de casa pra viver a vida da maneira que eu bem entendesse. 

Minha vida seguiu esse rumo por quase três anos.

De tempos em tempos eu passava no médico só para aproveitar a consulta e roubar algumas folhas do receituário. Falsificava a assinatura, forjava o carimbo e fazia as receitas ao meu modo. Modificava a quantia de miligramas de cada componente da fórmula e adquiria com facilidade as minhas cápsulas cheias de droga. Drogas poderosas que agiam dentro de meu organismo de maneira avassaladora, juntamente com todo tipo de bebida que você imaginar. Do meu jeito, afirmando a todos que eu nunca usei drogas, eu vivia intensamente o "sex, drugs and rock'n'roll".

Rebeldia instalada e assumida

Não posso atribuir ao meu pai a culpa dos meus erros. Sua educação repressora e ditatória contribuíram para que eu escolhesse um caminho diferente daquele em que estava, mas minhas escolhas também se basearam na necessidade de fugir dos problemas e pressões vindas de outros lugares, de outras pessoas. Minhas decisões estavam sendo tomadas justamente para mudar o rumo da minha vida, mudar a minha história. Estava tentando resolver tudo "by myself".

Eu tinha um discurso. Uma frase pronta pra quem quisesse me confrontar. A frase era:

- Prefiro ficar louca usando anfetaminas e tomando cerveja do que cheirando cocaína e injetando heroína. Pelo menos assim eu não me vicio.

Triste ilusão. Já estava viciada e continuava me enganando.

Não sei se as pessoas acreditavam nas minhas convincentes palavras, mas eu continuava usando-as com propriedade.

Enquanto meus amigos fumavam maconha diariamente e faziam uso de substâncias alucinógenas, eu os acompanhava na loucura com a consciência totalmente limpa, afinal, anfetamina não era droga. Nem cerveja. Ninguém tinha com o que me condenar. Eu estava com a ficha limpa, minhas alucinações, meus acessos de raiva, minhas loucuras e meus medos eram totalmente explicáveis! Era só ler a bula do medicamento e qualquer um encontraria vários efeitos colaterais que eu havia apresentando em meu dia-a-dia. Encontraria também a frase "este medicamento não deve ser ingerido com álcool", mas ora bolas, só uma cervejinha aqui e ali não era pecado.

É incrível como o ser humano se sabota.
Eu só queria ser livre e poder viver do meu jeito. Só queria me divertir e viver a vida de maneira leve, sem preocupações ou problemas absurdos latejando em minha mente. Só queria continuar emagrecendo cada vez mais para ter uma vida normal.

Mas o que fiz foi prender a minha vida em outra jaula. Tornei-me escrava de outras coisas.


O princípio da rebeldia

Já disse aqui que eu sou a caçula da família. 

Ser a caçula tem seus prós e contras. E um dos contras mais fortes é a educação super-protetora que recebi de meu pai. Ele me amava muito, eu sabia disso muito bem, mas sua forma de demonstrar esse amor era sufocante. 
O seu amor era envolto ao medo de me ver sofrer ou morrer. Hoje entendo isso tudo melhor, ele perdeu sua mãe e seu irmão mais novo precocemente e de forma trágica, desenvolvendo em seu coração um pavor a respeito de perdas. Porém seu cuidado exagerado me trazia desespero. 

Eu não podia ir à casa de meus amigos, não podia dormir fora de casa, não podia colocar a tomada no interruptor, não podia acender o fogão ou aprender a cozinhar, não podia sair a noite com ninguém, não podia ir à festas. Nunca havia uma explicação, nunca havia uma conversa, era apenas "não, não pode".

Hoje tenho um filho de 8 anos e o que mais faço com ele é dar explicações pra tudo. Sei que exagero, que há momentos em que o "não" não precisa vir com explicações, mas simplesmente não consigo deixar de fazê-lo. Sei o porque disso. 

Aos 15 anos percebi que as anfetaminas haviam me dominado de uma tal forma que já não conseguia ficar sem elas. Obviamente, meu discurso era sobre os efeitos mágicos que obtinha através do conteúdo daquelas cápsulas bicolores. Mesmo percebendo que tais efeitos eram passageiros e que no final o resultado seria danoso, eu não conseguia me livrar delas.

Uma dependência pelas anfetaminas se instalava em meu corpo e eu ainda acreditava que podia dar conta do recado.


Aos 16 anos estudava em uma escola de princípios mais livres, onde o aluno não precisava comparecer às aulas se já tivesse respondido à chamada. O período era integral, eu ia de manhãzinha e só voltava para casa ao final da tarde, isto é, tinha 10 horas para serem gastas naquele lugar. Como sempre fui muito boa aluna, aliás, sempre fui a melhor aluna da classe, aos 17 anos acreditei que era tempo de eu relaxar e curtir um pouco mais a minha vida, experimentar coisas novas. Pensava que, se eu não assistisse às aulas mas depois pegasse as anotações dos colegas ou as páginas dos livros, conseguiria aprender. Afinal, sempre fui autodidata pra tantas coisas!


Foi então que comecei a dar alguns passos conscientes rumo ao abismo.


Faltava à maioria das aulas, passava horas conversando, rindo, cantando, vendo o pessoal jogar cartas, indo às repúblicas que ficavam ao redor da escola, ouvindo música, falando de música.


Com a música vieram os novos sons, as novas manias, os novos costumes, novas roupas, novos conceitos. E de repente, beber uma cerveja de vez em quando não me parecia tão errado. Mesmo enquanto eu tomava as minhas anfetaminas.

Adolescência

Aos doze anos eu já exibia um corpo de moça. Seios fartos, bumbum também. Já não era mais tão gorda, havia crescido um pouco em estatura, a barriga havia diminuído.

Porém, aos treze anos levei um susto. Quando achava que estava tudo bem, tudo normal, escuto um grito vindo de um grupo de meninos que estavam na arquibancada, enquanto eu e minha amiga magra fazíamos cooper: "Olha que coisa mais linda, que coisa mais elegante, uma princesa correndo com um elefante". O elefante era eu.

É claro que naquele momento eu empinei o queixo, levantei minha cabeça e me fiz de dona da situação. Mas quando cheguei em casa chorei copiosamente por mais de uma hora. Naquele momento decidi que procuraria um médico para me auxiliar em minha perda de peso. Mal sabia eu que aquele era o primeiro grande passo na direção errada.


Estávamos nos anos 80. Era o auge das anfetaminas e das fórmulas mágicas de emagrecimento. A pessoa tomava algumas pílulas por dia, não sentia fome, mal se alimentava e perdia vários quilos. Sim, perdia, porque quem perde, um dia encontra. Me lembro de ter perdido em torno de 8 quilos na ocasião. Era a glória!


Walkyria havia vencido a primeira batalha, mas infelizmente não a guerra.
Após alguns meses os quilos voltaram, trazendo uns a mais.

Várias e várias batalhas foram travadas durante toda a adolescência. Em algumas perdia-se de 8 a 12 quilos, em outras 15 quilos. Aos 16 anos cheguei a perder 23 quilos. Mas os quilos sempre voltavam e eu sempre ficava mais gorda do que estava antes de tomar as anfetaminas.

Quando olho pra trás e me lembro de como era o meu corpo, tenho vontade de gritar pra aquela adolescente: "Hey, sua boba, pare de dar ouvidos pra essa gente! Você é linda! A gorda que eles tanto tiram sarro não tem mais do que 80 quilos, com 1,63 de altura. Você é gordinha sim, mas é linda, cheia de curvas, toda durinha. Vários meninos olham pra você te admirando, você já teve alguns namorados, teve até um que era o menino mais bonito da escola. Ele poderia escolher qualquer menina, mas quis ficar com você, porque além de linda você também é inteligente, legal, engraçada, cheia de qualidades. Não deixe isso embaçar a sua visão sobre quem você realmente é!".

Porém, eu continuava indo no mesmo médico que me garantia que, se eu tivesse força de vontade, manteria o meu peso normal. A vontade de ser magra e de me livrar dos olhares de repulsa, das palavras de vergonha e das gozações da família a respeito do meu corpo gordo era maior do que tudo. Se era tomando anfetaminas que eu alcançaria o meu objetivo, então continuaria tomando. Estava me envenenando e sabia disso. Só achava que estava no controle de tudo, quando na verdade não estava.

Infância

Vamos por partes.
Antes de mais nada preciso contar um pouco da minha história pra você.

Quase morri ao nascer. Fui intoxicada pela anestesia que o obstetra de minha mãe deu a ela para adiantar o parto. Ele teria uma viagem e um parto normal atrapalharia seus planos. Quem me salvou foi o meu pai, homem simples mas de uma inteligência ímpar. Ao perceber que meus sintomas eram os mesmos que ele lera em um livro de medicina que havia na estante de sua casa, correu gritar para quem quisesse ouvir que sua filhinha estava intoxicada pela anestesia e que precisava de cuidados urgentes nesse aspecto. Se não fosse ele, eu teria morrido ali mesmo.

Sobrevivi. Após passar vários dias na UTI, consegui ser levada para casa. Sendo a caçula de 4 irmãos, começava ali minha vida cheia de erros e acertos. Minha irmã, 15 anos mais velha, ajudava minha mãe a cuidar de mim. Minha outra irmã acompanhava tudo, mas não me lembro da sua participação em minha vida, talvez por ser uma criança de 10 anos que mais ficava na rua do que em casa. Meu irmão, com 7 anos na época, só soube que minha mãe estava grávida quando ela apareceu comigo em seus braços.

Conversando um pouco com minha família, soube que minha infância foi regrada a doces e carboidratos. Quando bebê, minha mãe mergulhava a chupeta no açúcar antes de colocar em minha boca. Minhas mamadeiras eram preparadas com leite engrossado com maizena e açúcar. Já maiorzinha, tomava Biotônico Fontoura para crescer forte e inteligente. Uma colher de sopa cheia por dia. E muito mingau de aveia ou de maizena. Muito refrigerante. Muita bolacha Maria. Minha mãe pensava que estava fazendo o melhor pra mim. Meu pai trabalhava o dia todo pra colocar dinheiro em casa, justamente pra que não nos faltasse nada.

Soube, bem mais velha, sobre o processo de formação das células de gordura. Se você alimentar uma criança de maneira saudável até os 11 anos, suas células serão magras e ela terá todas as chances de se tornar um adulto magro. Porém, se você alimentar uma criança com alimentos gordurosos, açúcares e carboidratos, suas células serão gordas e ela será definitivamente um adulto gordo.

Aos 10 anos comecei a dar os primeiros sinais de uma futura adulta gorda, adulta esta que teria problemas nesta área pelo resto da vida. Aos 11 anos menstruei e então a pequena Walkyria nasceu, embarcando nos primeiros meses de luta desta guerra tão desleal. O passado alimentar errôneo, aliado à genética e à pré-disposição ao armazenamento de gordura no corpo seriam seus maiores inimigos.

Naquela época o bulling já existia, mas ninguém se preocupava em combatê-lo. Eu era chamada pelas crianças na escola e pelos meninos maldosos na rua de baleia, rolha de poço, bujão de gás, barril, Wilza Carla, elefante, hipopótamo, gorducha, gordona, bola, bolota, balão.


domingo, 22 de março de 2015

Meu nome e sobrenome

Já disse que meu nome aqui neste blog é fictício.
Escolhi assim para poder me expressar sem medos ou expectativas. Exponho meu eu fragilizado, exponho minhas derrotas e vitórias e não me sinto exposta.

Mas por quê Walkyria Smith? Posso explicar.

O significado do nome WALKIRIA é "guerreira".

SMITH é o sobrenome mais comum em alguns países, como "da Silva" é aqui no Brasil. Um sobrenome sem pose, sem posse, sem pretensão.

- arte de mario wibisono -
Meu nome fictício se resume a UMA GUERREIRA COMUM. Sou como todas as outras mulheres quando se está sem roupas, sem carro, sem dinheiro, sem nada. Só uma mulher. Uma mulher comum, uma guerreira indesistível.


A razão deste blog

Um dia eu li que quando pensamos em fazer uma grande mudança na vida, precisamos de expectadores. Eles serão nosso vigias, observando cada erro e acerto, vaiando ou batendo palmas. Não precisam fazer parte necessariamente de nosso rol de amigos e conhecidos. Pode ser gente desconhecida, gente anônima, gente improvável. Basta ser gente.


Seguindo esse conselho, crio esse blog. Meu nome é fictício, porém meus sentimentos aqui escritos serão sempre extremamente reais. Não sei se um dia alguém lerá estes posts, mas se os ler, o retorno das leituras me será muito importante. Por isso, sinta-se à vontade para comentar em meus posts.

Sim, mais um blog sobre mudança de vida, mudança de corpo e de atitudes. Mas mais do que isso, um blog sobre mudança de paradigmas e de transformação total. De corpo, mente e coração.